Patinhos Feios do Século XXI

Em 11 de Novembro de 1843 foi publicada pela primeira vez aquela que haveria de ser uma das histórias mais conhecidas no mundo – O Patinho Feio.

História Clínica

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I – Identificação

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Nome: Patinho Feio

Idade: 167 anos

Naturalidade: Copenhaga – Dinamarca

Filiação: Pai – Hans Christian Andersen

Residência: Internet e Livrarias

Anamnese e História Familiar

Em 11 de Novembro de 1843 foi publicada pela primeira vez aquela que haveria de ser uma das histórias mais conhecidas no mundo – O Patinho Feio.

Não foram só as crianças que se deliciaram com ela, os psicoterapeutas também.O Patinho Feio foi, e continua a ser, um conto de sucesso. Contém ensinamentos essenciais quer para crianças, quer para adultos que nunca é de mais relembrar, vejamos porquê. O seu autor, Hans Christian Handersen, foi um menino nascido numa família, agora dita disfuncional, com graves condições sócio económicas e habitacionais (um quarto para toda a família). A mãe, lavadeira, era iletrada e problemática. Sofria de alcoolismo crónico e viveu alguns anos da sua vida na prostituição. O pai, sapateiro, soldado de Napoleão, submerge a este caos como uma figura equilibrada apesar de doente. Sabia ler e escrever era dotado de uma grande cultura para a época. Talvez o possamos caracterizar como um visionário. Aproveitou os seus conhecimentos e o pouco tempo de vida que lhe restava para transmitir ao filho, através de uma excelente relação de vinculação pai/filho, os alicerces que estimulariam o imaginário e a fantasia de Hans, tornando-o, no futuro, o primeiro contador de histórias e o mais conhecido autor dos contos de fadas.

Estimulou a sua criatividade e criação através do jogo, do faz de conta, orientando-o no desempenho de papéis e personagens que ambos inventavam e punham em prática encenando peças de teatro com a utilização de fantoches. Ensinou-o também a cantar.

Aos 11 anos o pai faleceu e Hans abandonou a escola. Passou por um mau período, repleto de dificuldades e provações. Chegou a ser menino de rua e explorado a nível do trabalho infantil. Aos 14 anos decidiu abandonar a casa em Odense e partir para Copenhaga pois desejava ser cantor de Ópera. Já nesta fase Hans apresentava escolhas e atitudes diferentes. Fisicamente era alto, bastante disforme, desastrado, sofrendo de um “complexo de inferioridade” por ter uma altura anómala para os seus 14 anos (1,80 m ).

Perante alguma bizarria da conduta todos faziam troça dele. Não tinha amigos, encontrava-se socialmente isolado e era tido como um lunático.

Em 1819 o rei Frederico IV da Dinamarca interessou-se por “aquele estranho rapaz” e ofereceu-lhe uma bolsa de estudos na Escola Slagelse.

Hans detestava a escola, mas acabou por frequentar as aulas durante alguns anos. Mais tarde, refere-se a esse período como o mais negro e amargo da sua vida. Nessa escola foi humilhado, rejeitado e ostracizado por todos. Hoje classificá-lo-íamos uma vítima de bullying…

Aos 23 anos descobre o seu verdadeiro talento – escrever histórias infantis, identificando-se com alguns dos personagens que criava. Amigo da natureza e de viagens aproveitou os campos verdejantes da Dinamarca, os seus castelos, palácios e florestas para se inspirar nos contos com princesas, duendes e fadas, bem como na tradição popular dinamarquesa.

É bem conhecido que, para além de vários romances que escreveu, nos deixou cerca de 156 histórias infantis, entre elas “O Patinho Feio”.

II – História do caso

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... Por fim, os ovos estalaram um atrás do outro, clac! Clac! e todas as gemas se tornaram cabecinhas inquietas.

- Coá, coá – dizia a mãe.

Os patinhos agitavam-se quanto podiam e, olhavam para todos os lados por baixo das folhas verdes, sob a vigilância complacente da mãe…

… Levantou-se e acrescentou: - Não, não estão todos. O ovo maior ainda não se abriu. Quanto tempo irá durar antes que se resolva? Sinto-me já tão farta…

… Até que finalmente estalou aquele ovo maior.

- Pi, pi! – disse a avezita, saindo à luz do dia. Era grande, era feio…

… - Que figura tem aquele patinho! Ah, não, não o queremos no nosso meio! E logo uma delas avançou, para o morder.

- Deixa-o em paz – acudiu a mãe. – Não faz mal a ninguém, coitado.

- Pois sim, mas é muito patusco, com essa altura toda! Bole-me com os nervos…

A pata espanhola falou por sua vez:

- Linda ninhada que tu trazes … São, realmente, muito bonitos, todos menos um … Seria preferível chocá-lo outra vez.

- Agora é tarde – replicou a mãe. – Compreendo que não é belo mas tem bom feitio e nada tão bem como os outros. Atrevo-me a pensar que há-de progredir com o tempo e há-de ficar tão normal como os restantes. Esteve mais uns dias na casca, e daí a razão de ter saído maior que os irmãos. – Alisou-lhe a plumagem e concluiu: - Mas não há dúvida que é pato. Há-de trilhar o seu caminho …

… Todavia, o patinho feio, por ser diferente dos outros, foi empurrado e mordido, tanto pelos patos como pelas galinhas.

- É grande de mais – observavam todos.

Certo peru, que se considerava uma espécie de imperador inchou como um barco a vela e ficou com a cabeça muito vermelha. O patinho, coitado, nem sabia onde se meter. Estava contrito por ser tão feio e servir de chacota aos outros animais.

Todos o perseguiam, até os irmãos e irmãs, que chegavam a dizer-lhe:

- Se ao menos te levasse o gato!

E a mãe:

- Não desgostava que desaparecesses…

Os gatos mordiam-no, as galinhas davam-lhe bicadas e a criada que lhes deitava de comer costumava aplicar-lhe pontapés …

… - És realmente muito feio – disseram os patos bravos. – Mas isso não tem importância, uma vez que não te cases na nossa família.

Coitado! Pensava lá em casar-se! O que ele apenas queria era que o deixassem dormir entre os caniços e beber um pouco de água do charco…

… Seria longo e triste contar todas as desgraças que suportou durante aquele Inverno. Quando voltou o bom tempo, o nosso patinho achava-se num paul, o solbrilhava e aquecia, os pássaros cantavam… Era uma Primavera deliciosa…

… Que bem que se estava ali! Diante dele, saindo da folhagem espessa, avançavam três belos cisnes, adejando e nadando com elegância: reconheceu os três animais de outro tempo, esses que lhe haviam parecido magníficos – e eram, na realidade – e encheu-se de enorme tristeza.

Depois, dirigiu-se para eles, com a cabeça baixa, para lhes mostrar que estava pronto a morrer. Foi então que viu o seu reflexo na água: o patinho feio e pardo tinha-se metamorfoseado num soberbo cisne branco…

Confuso, ele escondeu a cabeça debaixo da asa. Sentia-se felicíssimo, porém não orgulhoso. Depois de tanto desprezo e tanta chacota, ouvia os maiores elogios! E os lilases inclinaram-se mais para a água, e o Sol brilhou mais quente. Erguendo o pescoço estreito e eriçando as asas, ele exclamou, encantado da vida:

- Nunca sonhei tamanha felicidade, quando era um patinho feio…

Andersen, Hans Christian, Contos de Andersen, Relógio D’ Água Editores, Novembro de 2007, Lisboa

III – Discussão

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Hans Christian Andersen conseguiu através da fantasia dar sentido às provações vividas na sua difícil infância. Transformando-se num adulto resiliente, mas não adaptado. Foram as acções, palavras e personagens criadas que lhe permitiram reinventar-se através do sofrimento.

Toda a sua literatura foi marcada pela infeliz infância que teve. Procurou sempre padrões de conduta na defesa dos mais frágeis e desprotegidos. Implicitamente a obra está marcada pela defesa dos direitos do homem ainda que não o tivesse escrito em concreto.

A sua obra faz parte do imaginário de todas as crianças. A tudo isto não foi alheia a existência de um pai que numa fase muito precoce lhe serviu de rampa de lançamento para a vida através das brincadeiras, jogos, ensaios e teatro que ambos construíram. O pai de Hans foi seguramente a figura central da sua existência.

Impregnou nele um modo especial de se relacionar com os outros, permitindo-lhe encontrar meios de ressocialização e da reconstrução do seu Eu.

A forte vinculação pai/filho resultou numa ligação que persistiu, durou e criou pontes no tempo e no espaço, sendo promotora de segurança para o pequeno Hans que veio a permitir-lhe a capacidade de se transformar num belo cisne, ainda que através da tristeza e da depressão veja-se:

“Depois, dirigiu-se para eles, com a cabeça baixa, para lhes mostrar que estava pronto a morrer. Foi então que viu o seu reflexo na água: o patinho feio e pardo tinha-se metamorfoseado num soberbo cisne branco…”

IV – Conclusões

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É praticamente um dado adquirido dizer que as pessoas tentam sempre corresponder ao ideal do eu lançado sobre elas pelos seus pais. A partir dessa percepção a criança desenvolve um conjunto único de mecanismos de defesa para lidar com o stress, quer seja na sociedade, quer seja na escola. Quando não consegue corresponder a tal imagem e à competição exercida sobre ela, aparece a frustração que vai interferir na construção da personalidade, alterando a sua futura relação com o mundo, frequentemente através da agressividade, das alterações do comportamento, da irrequietude ou mesmo do isolamento e da tristeza.

Especificando melhor, uma criança, por exemplo, portadora de um défice de atenção/concentração, com ou sem hiperactividade, que não atinge sucesso na sua vida escolar ou que não consegue acompanhar o ritmo da aprendizagem dos outros, manifestando-se perturbador no meio académico, torna-se frequentemente num patinho feio ainda que fisicamente possa ser muito bonito.

As pressões iniciam-se frequentemente no seio familiar, na escola ou mesmo no recreio. Não é necessário recorrer à narrativa de muitas famílias, basta copiá-las do conto supracitado.

A mãe: Sinto-me já tão farta!

Não me desgostava que desaparecesses… (por uns tempos que fosses para um colégio…)

Na Escola: “foi empurrado e mordido… coitado nem sabia onde se meter… estava contrito por ser tão feio e servir de chacota aos outros… mas davam-lhe bicadas e pontapés. “Deve ser porque sou muito feio” – pensou o infeliz que, fechando os olhos continuou a correr, a afastar-se cada vez mais, fatigado e triste.

Surgem rapidamente, no meio escolar, os registos na caderneta, alguns já com o rótulo de Hiperactivo outros com ultimatos para os pais tomarem medidas médicas e medicamentosas a fim de se repor a normalidade na sala de aula sob pena de serem levantados processos disciplinares.

Não é incomum que um aluno com problemas de irrequietude, imaturidade, ansiedade e défice de atenção seja chamado à parte na escola e “leve uns tapas” para acalmar a má educação… Por outro lado, os colegas rapidamente descobrem que vai ser divertido gozar com o novo patinho feio para gáudio de todos. Assim, se começa um périplo de maus-tratos e agressões em centenas e centenas de crianças no Portugal do século XXI.

Os pais preocupados recorrem ao médico, levam consigo já um diagnóstico e as pressões dos professores no sentido de se colocar um fim aos maus comportamentos através de uma qualquer medicação, desde que seja realmente eficaz!

Começa geralmente pelo metilfenidato sob uma qualquer forma, depois aumenta-se a dose ou são prescritos novos medicamentos até que o aluno se torne exemplar, isto é, permaneça “quedo, mudo e cego” na sala de aula.

Confundir agitação psicomotora de difícil auto-controle com má educação é, no mínimo, um grave erro diagnóstico.

Ultimamente, começa a ser preocupante o crescendo de crianças que aparecem nas consultas de Pedopsiquiatria não tanto na procura de ajuda para a hiperactividade ou para o défice de atenção/concentração, mas sobretudo para tratamento das consequências da sobremedicação.

O quadro psicopatológico destes meninos é confrangedor. No gabinete médico apresentam-se tristes, desinteressados, desmotivados para a vida escolar e até assustados. São meninos e meninas que não sorriem, têm baixa da auto-estima, porém mantêm a crítica e os seus relatos impressionam: “estou triste, não tenho amigos, ninguém na escola gosta de mim…”. São chamados de parvos, burros, tolos e entre muitos outros nomes, grande parte deles muito inconvenientes.

É frequente estes alunos chorarem durante a entrevista médica porque são infelizes, não gostam de viver. Sentem-se humilhados e não percebem a razão. Eles próprios sentem-se interiormente normais, apenas não são capazes de estar quietos nem atentos e esse facto foge-lhes ao controle.

No fim, pedem segredo porque têm medo que os pares saibam da “denúncia” e os maltratem ainda mais. Este jogo do silêncio tem tendência a perpetuar-se até ao dia em que as agressões ultrapassam os limites e a denúncia se torna obrigatória por uma ida à urgência do hospital, ou, no limite, a uma tentativa de suicídio.

Quando são convidados a entrar na magia dos desejos alguns dão respostas como as que se seguem: “O meu maior desejo é não ir à escola, ficar em casa e ter paz!”; “É ter só aulas às terças e quintas-feiras porque nesses dias estão lá os professores de quem eu gosto.”; “Que só houvesse escola até ao 5º ano de escolaridade.”; etc., etc.

V – Recomendações

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Não podemos esquecer que as pessoas tendem a interiorizar os valores emitidos a respeito de si próprios vindos do espelho chamado – olhar do outro. Assim, cada criança vai desenvolver um conjunto único de mecanismos de defesa para lidar com o stress, podendo mesmo tornar-se muito agressiva e até perigosa quando o meio envolvente não cria métodos complementares (estratégias) que a possam ajudar para além da eventual medicação.

As famílias deverão esquecer a competição desenfreada da actual sociedade onde se estimula a criança ao sucesso escolar, muitas vezes sem a olharmos de modo total e como pessoa única. É importante sentir os filhos de uma forma mais emocional e menos racional, colocando o seu bem-estar em primeiro lugar e só depois os resultados escolares. É muito importante que as nossas crianças sejam felizes, afinal que se sintam belos cisnes e não patinhos feios.

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