Desde os primórdios da história da Anestesia que a possibilidade de o paciente recordar acontecimentos ocorridos durante a cirurgia é uma preocupação para o anestesista, preocupação essa partilhada e muito temida pelo paciente que vai ser submetido ao acto cirúrgico. O primeiro caso relatado data de 1842. Claro que filmes, surgidos nos últimos tempos no cinema, contribuíram em larga escala para o intensificar destas preocupações. «Awake», “Acordado”, título em português, conta a história e o horror de um paciente que, durante uma cirurgia de transplante cardíaco, se mantém consciente, mas paralizado e incapaz de avisar a equipa cirúrgica do que se passa. Nos EUA, a publicidade ao filme promete “fazer pela cirurgia, o que o “Tubarão” fez pelo nadar no mar”. Exageros hollywoodescos à parte, o despertar intra-operatório é cada vez mais um fenómeno raro, tendo contribuído para isso o aparecimento de novas formas de monitorização da profundidade anestésica.
Como aconteceu com os primeiros relatos de síndrome da fadiga crónica e distúrbios de hiperactividade, também nesta matéria muitas pessoas acham, erroneamente, que sofreram um destes episódios. Ao abordar esta temática, é importante esclarecer que apenas na anestesia geral é mandatória a perda total da consciência. Ao optar por outro tipo de técnica anestésica, muitas vezes o anestesiologista pretende que o paciente mantenha um nível de consciência que auxilie à execução do procedimento cirúrgico ou que proteja o paciente (por exemplo, protegendo a via aérea com o reflexo da tosse, etc.). Na anestesia local, o paciente permanece consciente, embora muitas vezes se administrem ansiolíticos para maior conforto e diminuição da ansiedade. Na sedação, embora o paciente não esteja tecnicamente inconsciente, procura-se minimizar ou eliminar a memória do procedimento, mas nem sempre há amnésia completa. Nestes casos, o facto de o paciente recordar, sobretudo o início ou o final da intervenção não é motivo de preocupação. Despertar intra-operatório define-se como o estado em que o paciente esteve consciente durante uma anestesia geral e é capaz de narrar factos ocorridos durante essa anestesia ou após esta ter terminado. No fundo refere-se à memória explícita de percepções sensoriais. Estima-se que este fenómeno ocorra em 0,1-0,2% dos pacientes submetidos a anestesia geral. Na maioria dos casos recordam conversas, embora alguns refiram sensação de asfixia, impossibilidade de se moverem, medo ou pânico; em 0,01% dos doentes associa-se dor, sendo estes casos os mais traumáticos, embora muito raros. A maior parte dos doentes a quem esta situação ocorreu estava sujeita a situações extremas, em que a quantidade de anestésico permitida era reduzida a fim de evitar efeitos secundários graves dos mesmos (politraumatizados, perdas sanguíneas abundantes, falência respiratória, insuficiência cardíaca descompensada, …) ou devido a falha no equipamento anestésico responsável pela administração contínua de fármaco ao paciente, habitualmente pelo circuito do ventilador. Nesta matéria, a grande evolução na prevenção da ocorrência de fenómenos de despertar intra-operatório deve-se ao aparecimento de aparelhos para medição da profundidade anestésica, a saber a monitorização do índice biespectral (BIS) do electroencefalograma (EEG) - determinação do padrão de ondas cerebrais, medição dos potenciais auditivos evocados (AAI) e a monitorização da entropia do EEG. Destes, o mais utilizado é o BIS, parâmetro calculado a partir do EEG e ao qual é atribuído um valor de 0 (ausência de actividade eléctrica cerebral) a 100 (doente acordado), que indica de forma contínua o nível de consciência do paciente monitorizado. Ao ser uma medida directa e imediata do que realmente está a acontecer no cérebro do paciente, em resposta aos fármacos administrados, permite garantir que o paciente está a receber dose anestésica adequada, bem como ajustá-la a cada momento da intervenção e, assim, evitar o despertar intra-operatório. No passado, os anestesiologistas recorriam a indicadores indirectos como a pressão arterial, a frequência cardíaca, sudorese (libertação de suor), lacrimejo e a monitorização de gases anestésicos na expiração, que não informam acerca do que ocorre a nível cerebral (pode ocorrer despertar intra-operatório com pressão arterial e frequência cardíaca normais). No fundo, era como voar com nevoeiro: o piloto confia nos seus instrumentos e experiência, mas não consegue ver com exactidão. Valores de BIS a rondar os 40 correspondem à profundidade anestésica adequada, permitindo adequar a dose de manutenção anestésica ao paciente e à intervenção. O BIS surgiu em 1992 e é um método fiável, aprovado pela FDA (1996, para monitorizar hipnose e, em 2003, como indicador da profundidade anestésica), Joint Comission (Associação que supervisiona o cumprimento da legis artis, fazendo auditorias, nos EUA e no Canadá), FEEA (Federação Europeia para o Ensino da Anestesia) e ASA (Sociedade Americana de Anestesiologia). A tecnologia da monitorização do BIS funciona pela colocação de um sensor na testa do doente, obtendo-se então informação através da actividade eléctrica cerebral (EEG). Embora seja um fenómeno raro, por todos os devastadores efeitos psicológicos que provoca nos pacientes, a neuro-monitorização da profundidade anestésica associada a uma visita pré-anestésica cuidadosa (que, entre outras coisas, permite ao anestesista estar alerta acerca da toma de fármacos que mascaram respostas fisiológicas a níveis de profundidade anestésica inadequados) são elementos úteis que diminuem em grande escala a possibilidade de acordar intra-operatório, o que reforça a relação de confiança do paciente com o seu anestesiologista.